O mês de Setembro será, para as instalações do ex-IPA, actual IGESPAR, IP, o mês decisivo: iniciar-se-ão as demolições e a necessidade de reinstalação tornar-se-á então premente.
A responsabilidade de resolver a situação cabe em primeira instância ao Ministério da Cultura e à direcção do IGESPAR, na qual um dos seus subdirectores é arqueólogo.
Desconhece-se ainda como, quando e para onde se processará a transferência. Igualmente se desconhecem as eventuais futuras necessidades de adaptação dos espaços, definitivos ou provisórios, que vierem a ser encontrados.
Concretas e palpáveis são não só as actuais instalações, que vamos passar em revista, como as actividades que aí se desenvolvem.
1. A Divisão de Arqueologia Preventiva (DAPA), que coordena a intervenção no terreno das dez extensões territoriais, é um serviço absolutamente essencial para assegurar o cumprimento da Legislação em vigor, relacionada com a salvaguarda do património arqueológico, e o cumprimento das exigentes directivas comunitárias nesta matéria. O seu funcionamento encontra-se dependente do Arquivo corrente e histórico e da base de dados Endovélico e da Biblioteca de Arqueologia.
2. A Biblioteca de Arqueologia é a melhor do país, cedida pelo Instituto Arqueológico Alemão em 1998, e conta com largos milhares de volumes de monografias e números de revistas. Foi largamente enriquecida com o resultado das permutas das edições próprias. Durante dez anos, o IPA editou 19 números da Revista Portuguesa de Arqueologia (o vigésimo já saiu sob vigência do IGESPAR, aproveitando umas 'sobras' de outra rubrica orçamental) e 41 monografias da série Trabalhos de Arqueologia. De resto, a actualização do respectivo acervo - estipulada, aliás, no referido acordo - tem vindo a ser garantida fundamentalmente pela permuta das publicações de Arqueologia de edição própria com centenas de instituições congéneres e de investigação arqueológica, nacionais e estrangeiras, pois as verbas próprias do IGESPAR são quase inexistentes para qualquer tipo de aquisição.
Para 2008, por falta de cabimento orçamental, não se encontra prevista qualquer edição das publicações referidas ou a aquisição de publicações para actualização do acervo.
3. É no Arquivo, corrente e histórico, da Arqueologia Portuguesa, onde se encontra depositada toda a documentação oficial referente a mais de 50 anos de investigação arqueológica nacional.
O Arquivo soma neste momento cerca de 13.000 entradas, não contando com os múltiplos volumes em que se pode desdobrar cada processo. Dada a sua dimensão, ocupa várias salas nas instalações do ex-IPA.
Neste Arquivo encontramos toda a documentação relacionada com a actividade arqueológica, nomeadamente de cariz técnico-científico, além de importante informação administrativa essencial para a salvaguarda do património arqueológico.
Convém esclarecer que neste arquivo dão entrada todos os dias centenas de documentos, passando por ele todo o trabalho desenvolvido na DAPA.
É neste sentido que a preocupação das futuras instalações é ainda maior, pois não se pode encaixotar uma imensidão de documentos valiosos, sem primeiro ponderar a sua conservação, a sua disponibilização pública e acima de tudo, sem afectar o normal desenvolvimento da actividade da arqueológica e da tutela.
O IPA herdou e desenvolveu durante dez anos um Sistema de Informação, o Endovélico, que é bem mais do que um simples inventário geral de sítios arqueológicos. O objectivo que norteou desde início o seu desenvolvimento, foi a criação de um instrumento único na tarefa da gestão de toda a actividade da instituição, nomeadamente documental. Complementar ao Arquivo esta base de dados, permanentemente actualizada, constitui um elemento indispensável para a salvaguarda do património arqueológico nacional. Integra um Sistema de Informação Geográfica do património arqueológico e disponibiliza na Internet informação sobre mais de 25.000 sítios, tendo já registado mais de 120.000 consultas.
No dia em que forem desligados e removidos os servidores, se não estiver prevista noutro local a sua remontagem e ligação imediata à rede, quer a comunidade arqueológica, quer a actividade preventiva e de salvaguarda da DAPA, sofrerão com um recuo inadmissível no acesso à informação, que regredirá a uma situação similar àquela que se vivia há cerca de uma década.
4. As instalações da actual Divisão de Arqueologia Náutica e Subaquática (DANS, ex-CNANS), albergam o único serviço responsável pelo inventário, investigação e gestão do riquíssimo património arqueológico subaquático existente ao longo da costa portuguesa, o qual é objecto da cobiça dos caçadores de tesouros de todo o mundo.
Nos seus laboratórios conservam-se inúmeros vestígios de navios com centenas de anos, laboriosamente removidos do fundo do mar ou das zonas húmidas do litoral costeiro.
A questão da transferência da DANS é um problema muito mais complexo, que não se resume à reinstalação de um acervo bibliográfico ou de um arquivo.
Nos últimos 13 anos foram recolhidos e depositados materiais provenientes de ambientes submersos e ribeirinhos que incluem, por exemplo, navios construídos em madeira, cinco pirogas monóxilas (duas do século II a.C.), peças de artilharia em bronze e ferro, a colecção de cerâmica comum em melhor estado de conservação do país, com mais de 600 peças completas, entre outros.
O problema reside de imediato no facto de alguns destes materiais serem peças de grande dimensão, com cerca de duas toneladas, fabricadas em materiais frágeis que recomendam o mínimo de movimentação necessária ao seu estudo e tratamento e que não permitem a sua exposição por períodos prolongados.
Por outro lado, alguns destes vestígios encontram-se em tratamento laboratorial, por impregnação com PEG, que não deve ser interrompido sem que estejam criadas condições para dar continuidade imediata noutro local.
Neste quadro, o CNANS, actual DANS, dotou-se de equipamentos fixos que implicaram a construção de tanques, sistemas de aquecimento e circulação de fluidos ou a instalação de gruas que não podem ser transferidos para qualquer armazém, palácio, quartel ou museu por uma qualquer transportadora, contratada à pressão para se dar início às demolições já previstas.
O que está em causa com a transferência da DANS não é só a provável desactivação, por um período mais ou menos longo, de um serviço essencial, como a biblioteca, a osteoteca ou o arquivo do ex-IPA: Trata-se de um processo que se não for devida e tecnicamente ponderado, colocará em risco um património impar à escala internacional.
Onde estão, nos museus portugueses, pirogas com 6 m de comprimento e 2000 anos de idade?
5. O ex Centro de Investigação em de Paleoecologia Humana e Arqueociências (CIPA, integrado no agora DEPA) constitui um pólo central de desenvolvimento das Arqueociências em Portugal.
Foi criado com o objectivo de desenvolver, em cooperação com a "comunidade arqueológica nacional", programas inter-disciplinares de pesquisa sobre a evolução da paisagem portuguesa e dos antigos territórios humanos, sobre a história natural do homem e dos recursos por ele explorados, e sobre a natureza dos diferentes sistemas de adaptação documentados pela investigação arqueológica.
Este centro de investigação desenvolveu-se sob a forma de três laboratórios: Geoarqueologia, Paleoecologia e Arqueobotânica, Arqueozoologia. E dois núcleos: Paleobiologia Humana e Paleotecnologia.
A prossecução dos seus objectivos passava então por uma cooperação com o ITN (Instituto Tecnológico e Nuclear), em áreas da Arqueometria, nomeadamente de datação absoluta (C14, TL, OSL), de análise de isótopos estáveis e de caracterização de materiais.
O ex-CIPA foi o resultado do intenso trabalho de um pequeno grupo de investigadores, altamente qualificados em áreas absolutamente essenciais para a investigação arqueológica, e que já produziram mais de cinquenta relatórios especializados, disponíveis para consulta aos interessados. Tal produção especializada não teve, até hoje, comparação em nenhuma instituição académica portuguesa.
A presente situação poderá afectar, além do acesso e acondicionamento das colecções de referência, o estudo de todo um conjunto de espólio entregue pela comunidade arqueológica aos seus investigadores.
Referências: Mateus e Moreno, eds. (2003) - Paleoecologia Humana e Arqueociências. Um Programa Multidisciplinar para a Arqueologia sob a Tutela da Cultura. Trabalhos de Arqueologia. 29, IPA.
6. Ainda no ainda edifício do ex-CNANS encontra-se, na galeria do primeiro andar, o depósito de materiais arqueológicos que estava afecto ao IPPAR, primeiro organizado pelo Departamento de Arqueologia e depois mantido pela Direcção Regional de Lisboa, sendo presentemente tutelado pela Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo.
O espólio que aí se encontra, provisoriamente, resultou de inúmeras intervenções arqueológicas, umas de salvamento, outras de minimização e resultantes de obras programadas em monumentos. Foram sobretudo efectuadas pelo Departamento de Arqueologia durante os anos 80 e 90 do século passado, nomeadamente na área de Lisboa, muitas das quais não têm ainda o seu espólio estudado e publicado.
Só para se ter uma pequena ideia do que aí se encontra e corre risco, apresenta-se uma elucidativa listagem das principais estações: Casa dos Bicos, anos 80; Claustro da Sé de Lisboa; BCP/Lx, actual Núcleo Museológico da Rua dos Correeiros; Beco de S. Marçal, Mouraria; Beco das Farinhas, Mouraria; Igreja de S. Lourenço, Mouraria; Expansão do Metropolitano de Lisboa, 1994 a 1997 (Rossio – hipódromo romano; Largo do Corpo Santo - Palácio Corte Real; Ribeira das Naus, etc); S. Francisco, Santarém; Mosteiro de Alcobaça; Penedo do Lexim, Mafra.
Julho de 2008
Rui Boaventura